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sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Nas Sombras

Era irresistível aquela sensação, meio adormecida, meio acordada, permanecia na cama entre divagações e sonhos, após a dose de soníferos que ela tomara para não pensar.

Não notou em qual momento surgiu aquela feição caquética a sua frente e não saberia dizer se estava de olhos abertos ou fechados, mas era muito nítida aquela figura, que causava-lhe asco e tristeza.
Era uma mulher muito enrugada; magra quase aos ossos; olhos esbugalhados, vidrados, que sobressaiam da face macilenta dir-se-ia mais uma máscara; boca hirta com lábios adelgaçados quase invisíveis como que rascunhados no pergaminho que era sua pele; os poucos fios de cabelos não cobriam todo o couro cabeludo e escorriam para além da cintura, feito raízes velhas, finas e ressecadas; os peitos como pingentes moles e sem vida faziam um pequeno volume de cada lado do tórax e abdome até o umbigo sob as vestes rotas; as pernas e braços, como varetas de bambu cheias de nós, saiam do tronco e terminavam em extremidades tão afiladas, que pareciam ter apenas dedos.
A estranha mulher dirigiu-lhe, então, o olhar vazio, e naquelas órbitas ela se sentiu entrar, como que sugada por um túnel frio e pegajoso. Viajava a uma velocidade estonteante, e esbarrava em teias de aranha pelo caminho, apavorada queria voltar, sair daquele oco escuro e profundo, mas parecia que quanto mais desejava sair mais rápido ia ao fundo.
Foi visualizando quadros que bem conhecia.
A infância triste e sozinha no orfanato, crianças amigas suas que iam sendo adotadas em detrimento dela, a raiva e a inveja que acumulava nos recônditos de sua alma a cada adoção, o ódio e a incompreensão pelo abandono, o choro com os dentes apertados e as mãos crispadas ao travesseiro em ira.
Os maus tratos que sofreu, enquanto adolescente, sempre se sentindo preterida a outros, e o rancor e mágoa que se acumulavam. Então,a fuga do orfanato que a levou para as ruas onde conheceu a dor e o pavor, na violação de seu jovem corpo, nas noites mal dormidas sob marquises e viadutos.
A vida adulta no bordel, maltratada ainda pelos homens e mulheres, esvaziando-se cada vez mais de vida e luz e tornando-se uma negra mancha disforme cheia de cancros pelo corpo e retalhos pútridos de maus sentimentos corroendo-lhe a alma. Foi quando começou a quebrar todos os espelhos, iludindo-se que sem eles se tornaria melhor.
Viu, ainda, cenas de uma velhice precoce, esgotada e amarga, onde não conhecia mais o seu rosto, o espírito carregado de ódio por si mesma, desfazia-se em meio as areias da ampulheta do tempo, transformando-se em finos grãos que se espalhavam nos desertos de seu íntimo.
Desejava a morte mais que tudo, como um alívio para uma vida que mais lucraria em nunca ter existido. Mas, ilusão, ao morrer percebera que ainda sobrevivia, e pior, seu próprio fantasma a assombrava em questionamentos inúteis do que tinha feito para si mesma naquela existência, e aterrorizada via-se, qual caquética figura, no espelho de sua alma, o qual não poderia jamais quebrar. A tortura continuava sem fim.
Soprou, então, um vento invisível, que a fazia rolar e rolar em espiral retrógrada, completamente cega, imersa num mundo esponjoso.
Uma pequenina estrela surgiu no horizonte e foi crescendo até que num Bum! ela abriu os olhos e estava deitada em sua cama coberta de suor, o frasco de comprimidos vazio ao seu lado, o copo de água espatifado no chão.
Levantou-se com dificuldade, ainda entorpecida, agradeceu aos céus por estar de volta, prometeu-se nunca mais tomar quaisquer drogas e bendizer cada dia vivido dali para frente, foi para o chuveiro, e chorando lavou corpo e alma.

Perséfone Hades

Publicado em http://www.poesias.omelhordaweb.com.br/pagina_textos_autor.php?cdEscritor=1077

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A Perda

Pastor de Ovelhas em Israel
Antonio Furdiani
Que dia excepcional!
O sol brilha num céu azul que há muito não se via. As montanhas têm um tom de verde vivo e delineiam o horizonte até onde a vista alcança. As ovelhas estão animadas e os filhotes saltitam na relva em brincadeiras, as mães-ovelhas balem como se repreendessem seus filhos pelas peraltices. A relva deste ano está mais verde, cheia de brotos a crescer.
Ao longe, lá no alto da colina, fumega a chaminé do fogão de casa, mamãe está a preparar pães doces, hoje, a pedido meu. Desde que papai viajou, há algumas semanas, não a via tão animada com algo. Hoje, pela manhã, sorria e cantarolava enquanto preparava o desjejum.
- Bom dia! Meu querido e feliz aniversário! Venha sentar, tenho aqui um bolo especial que fiz para você, e quero ver meu homenzinho forte e alegre como seu pai. Pressinto que o dia será maravilhoso com um lindo sol para brindar seu natalício!
Mamãe era assim, sempre fazendo coisinhas de que gostávamos, por vezes passava horas na cozinha a tramar alguma receita gostosa. Ela adorava adornar a casa com lindas cortinas feitas à mão, toalhas bordadas sobre a mesa, delicadas cestas de fibras feitas por ela estavam sempre cheias de frutas, e todos os dias mimava seus “homens da casa”, como costumava dizer.
Eu estava fazendo 14 anos e pastoreava desde muito pequeno naquele vale que fazia parte de nossa propriedade, os nossos cães eram os melhores, e não me lembro de termos perdido uma só ovelha para os lobos tão comuns naquela região. Ficávamos até a tardinha no vale e depois levávamos as ovelhas para um curral, próximo à casa, onde passavam a noite, mas todos os dias elas precisavam de relva fresca para crescerem fortes. Nos primeiros dias da primavera ajudava papai a tosquiar as ovelhas, então uma grande parte da lã era amarrada em fardos e papai viajava para as cidades próximas para vendê-la. Já fazia quatro semanas que papai havia viajado com uma das melhores partidas de lã dos últimos anos, ele parecia muito feliz com a produção, e certamente traria novos produtos da cidade para nosso consumo.
Quando o sol estava a pino, mamãe trouxe meu almoço, batatas e salsichas com seu delicioso molho de mostarda e um daqueles pães para que eu mordiscasse à tarde. Enquanto comia, mamãe ficou a falar de como ela e papai esperaram com ansiedade para verem meu rostinho pequeno por entre os panos e como foi o meu nascimento, e como cresci tão rápido e agora era um homem com todas as responsabilidades de nossa fazenda nas mãos enquanto papai negociava.
Os dias se passavam assim, com muita tranqüilidade e eu sabia que deveria aprender tudo que podia, pois seria, também, um criador de ovelhas.
A tarde foi sonolenta e não trouxe novidades. O sol poente abrasou o horizonte buscando as verdes montanhas ao longe, então me pus a caminho de casa com meu rebanho e os cães.
Ia tranqüilo como se quisesse que aquele dia não terminasse. Depois de abrigar as ovelhas, sentei-me em uma pedra que ficava em frente à casa e fiquei a divagar sob um céu que começava a estrelar e o lusco-fusco do sol que já dobrava atrás das montanhas.
Pensei em quão boa era minha vida naquelas paragens onde Deus fazia morada, dia e noite, tudo era tão lindo e o artista deveria sentir-se orgulhoso daquele quadro. Mamãe e papai sempre tão alegres eram pessoas boas e ajudavam quantos por ali passavam.
Divagando e respirando os últimos raios de sol, subi as escadas que levavam ao alpendre, onde mamãe estava sentada a tricotar um novo par de meias. Ficamos ali sentados até que a noite caísse por completo e pudéssemos ver as estrelas no céu. Conversamos sobre as bobagens do dia a dia e mamãe falou de sua ansiedade para que papai voltasse.
Já passava das oito quando entramos, comemos e nos recolhemos para dormir. Fazia mais ou menos uma hora que tinha me deitado, quando ouvi o tropel de cavalos, levantei e fui à janela, e mamãe chegou em seguida, assustada, parecia suar.
Abri a porta para receber o meu tio, irmão de papai, que já apeava próximo as escadas. Ele vinha sério e assim que subiu as escadas, nos abraçou e olhando minha mãe nos olhos disse: “Sinto muito”. Aquela frase caiu como uma pedra sobre a minha cabeça, olhei em volta e vi que chegava logo atrás uma carroça, que vinha a passos lentos. Mamãe correu naquela direção e soltando um grito abafado e desmaiou; corri para ela e com auxílio de meu tio socorremos a pobre infeliz que já acordava e gemia dolorosamente pela morte de papai.
Senti-me como que anestesiado, e sou incapaz de lembrar os detalhes daquela noite, a não ser o choro baixinho de mamãe interrompido, de quando em quando, por soluços profundos que vinham do âmago de sua tristeza, e me faziam conhecer um sentimento do qual eu não tinha, ainda, experiência alguma.
Lembro-me vagamente do Pastor recitando o Salmo de Davi: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará... Ainda que eu caminhe pelo vale das sombras da morte...”; a colocação da lápide com o nome de papai; as pessoas nos apoiando no adeus final; os olhos de mamãe como contas de vidro - vazios.
Mesmo agora, sentado sobre minha pedra favorita no pasto, olhando para a imensidão das montanhas no horizonte, ouvindo o cão a ladrar para as ovelhas, pareço estar sonhando, e ainda reluto em compreender este sentimento de perda.
Minha cabeça dói, fecho os olhos, as lembranças volitam em torno de mim como pequenos pássaros, os rostos afiguram-se a retratos, minha memória parece irreal, um sonho talvez, e o mundo se torna um incomensurável espaço em branco.
Perséfone Hades
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segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Quase Morte?

A noite! porque deve ser tão longa? (Há um segundo você estava aqui...)

Minha cabeça dói...

O apartamento em desordem, o furacão da minha fúria passou por ele, fotos sobre a cama, roupas sobre a mesa, livros espalhados nos quatro cantos, o sofá massa disforme em frente à TV ligada. Notícias do Oriente Médio, Américas utópicas, Áfricas famintas, Ovnis no Pacífico, ondas gigantes na Sumatra e em minh’alma...

Estas roupas estão fora de moda... Estes livros não têm mais sentido... Sou eu que não faço sentido... Estendido neste chão, olhando o teto infinito e este ventilador que cresce e se aproxima... Como em turbilhão trás lembranças de alguém que devo ter sido.

A fumaça se torna bruma no apartamento pequeno, cinzeiros espalhados, quantas pontas de cigarros... Um maço meio amassado adverte: fumar faz... faz minha noite passar, talvez menos vagarosa.

Cansado, olhos pesados, inchados; lembro que bebi demais, mesmo assim não durmo. Os soníferos não fazem mais efeito, mas mesmo assim engoli alguns.

A máquina de escrever continua com a mesma folha em branco há dias, meu editor já cobrou todos os prazos e está para desistir de mim. O ventilador de teto barulhento ri-se e diz que já abdiquei de mim mesmo.

Uma réstia de luz surge na janela, meus olhos fecham, meu corpo não responde ao apelo de minha bexiga, abandono-me a sensação parestésica de meus membros...

...

Nossa! Parece que passou um caminhão por cima de mim... meu corpo todo dói. Sinto uma sensação pegajosa em toda a superfície de minha pele, suor? Minhas roupas estão molhadas, meus cabelos grudados na face, os olhos teimam em não abrir, meus membros ainda estão anestesiados, ouço meu coração dentro dos ouvidos, bate devagar como se quisesse parar.

Há mais alguém no apartamento, mas tenho certeza de que tranquei as portas, será que ela voltou? Desta vez a briga tinha sido para valer, eu como sempre tinha “pisado na bola”. Por que era mestre em fazer isso? Meus sentimentos estavam confusos há muito, eu buscava aventuras para meus romances, e ela sofria com isso. Eu sabia que ela me amava, e eu também a amava, mas... Bom talvez isso não importe agora.

Os sons se multiplicaram e parece que estou no meio de uma multidão. Os olhos não abrem, mas sou capaz de sentir reflexos acima de mim que correm como se eu estivesse em um túnel.

...

'Túnel de luz', retratado neste quadro de Hieronymus Bosch (séc. 15)

Esta é a sensação mais estranha que tive em toda minha vida, estou assustado! Vejo meu corpo sobre um leito de hospital, muitas máquinas à volta. Há um tubo em minha boca e muitos fios espalhados pelo meu tórax que se dirigem a um monitor cardíaco?

O que houve? Estou olhando tudo do teto desta sala, sinto-me leve e flutuo como uma pena no ar. Vários profissionais se revezam, observando os aparelhos conversam entre si, mas não consigo entender o que dizem. Uma luz muito forte surge e nada mais é visível, é um grande espaço branco...

Perséfone Hades

Publicado em http://www.poesias.omelhordaweb.com.br/pagina_textos_autor.php?cdEscritor=1077

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A Dançarina

Depois de caminhar pelo túnel escuro por muito tempo, apenas visualizando uma luz ao fundo, minha visão clareou-se abruptamente.

Eu estava no salão de recepção, mesas baixas ao redor vinham até os limites da porta de entrada, desta podia-se ver o piso da parte central com um mosaico muito antigo, que mostrava a figura do deus vivo, cobrindo o chão; colunas ricamente pintadas em cores vivas ilustrando os feitos de Faraó assomavam até a cúpula branca, tão alta que diríamos viver ali gigantes. Ao fundo a escada de três degraus largos levava a um patamar onde havia uma mesa baixa com uma cadeira larga, de pedra azul trabalhada, com almofadas para o Supremo Senhor, e nas laterais do patamar, cadeiras em pedra branca, também trabalhadas, mais baixas, onde os convidados especiais do nosso Senhor Supremo, o Faraó, se sentavam.

O salão já estava cheio de convidados, os embaixadores de vários dos países associados e amigos do império.

Pela porta aberta entrou o meu grupo de sete mulheres, com vestimentas coloridas e transparentes; mãos e pés com as unhas pintadas; jóias no pescoço, orelhas, punhos, tornozelos e cintura; cabelos negros em corte reto pelos ombros desnudos; faces pintadas ao estilo da época. Instrumentos tocavam e nós dançávamos. Era uma sensação deliciosa a leveza dos gestos, o ritmo da música e os olhares postos sobre nós.

Quando enfim, rodopiamos e acabamos ao chão em gesto de dádiva para o nosso Faraó, minhas faces afoguearam-se ao perceber seus olhos sobre mim. Retiramo-nos de forma respeitosa e arrisquei olhá-lo, ficando lisonjeada de ver que seus olhos perseguiam minha saída.

Nós a sacerdotisas da beleza e da arte morávamos no Templo, que ficava em um anexo do palácio do imperador. Eu tinha chegado aos 13 anos, para ser iniciada nas artes da música e dança. Agora, aos 16, já instruída nos mistérios do Templo e treinada nas artes, fazia minha primeira apresentação pública e estava ansiosa para ver se haveria aprovação.

As festividades duraram três dias. No terceiro dia nós voltamos com a dança do fogo. Os olhos de nosso Faraó e Senhor Supremo brilhavam de pura satisfação, ao final da apresentação este nos sorriu com aprovação e fez um gesto de agradecimento direto a mim, de tal forma que corei e abaixei os olhos em respeito, mas sentindo-me radiante por dentro.

Nossa mãe, a Sacerdotisa Instrutora, ficou entusiasmada e chamou-me dizendo que deveria fazer-me mais bonita naquela noite, pois eu iria dançar particularmente para o Faraó.

A ansiedade foi aumentando, pois já tinha ouvido das sacerdotisas mais velhas, que nestes casos, as moças muita vezes iam fazer parte da Casa Imperial, como preferidas do Senhor Supremo e não voltam para o Templo.

Tudo aconteceu muito rápido. As irmãs juntaram-se a minha volta nos preparativos parecendo pássaros felizes na primavera, falando todas ao mesmo tempo e esvoaçando para lá e para cá. Banho de imersão; massagem com óleos perfumados; pinturas no rosto muito bem feitas; cuidados com as mãos, pés e cabelos. Roupas e jóias escolhidas a dedo pela Sacerdotisa Instrutora e muitas recomendações e orientações de última hora.

Formou-se um grupo de sacerdotisas mais velhas que me acompanharam em duas fileiras de cada lado até a porta da ante-sala dos aposentos imperiais. A música se iniciou, a porta foi aberta e entrei apenas eu em rodopios graciosos.

A sala era menor do que o salão de recepções, mas não era menos rica em detalhes. As colunas também pintadas em cores se sobressaiam do mosaico do chão. À frente numa cadeira de madeira avermelhada ricamente esculpida estava o nosso Faraó, em vestes brancas, sob seus pés um tapete de peles de animal imenso e uma mesa baixa também em madeira trabalhada onde se viam travessas da mais fina cerâmica com castanhas e frutas e uma ânfora de vinho acompanhada de duas taças.

O Senhor Supremo, nosso Faraó, olhava com atenção cada gesto de minha apresentação, seus olhos brilhavam com interesse. Um sorriso muito branco estampado no rosto mostrava seu júbilo. Eu me sentia quente, sorria em retribuição e dançava como ainda não o tinha feito em minha curta vida.

A música parou e estendi-me aos pés do meu Faraó no último acorde. A porta atrás de mim já estava fechada e os músicos retiraram-se sem que eu percebesse.

O Supremo então acenou para que eu me aproximasse, comecei a subir lenta e graciosamente os degraus largos que nos separavam. A vista escureceu.

...

Acordei na banheira de casa, relaxada e com esta vívida lembrança.

...

Perséfone Hades

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