Era irresistível aquela sensação, meio adormecida, meio acordada, permanecia na cama entre divagações e sonhos, após a dose de soníferos que ela tomara para não pensar.
Não notou em qual momento surgiu aquela feição caquética a sua frente e não saberia dizer se estava de olhos abertos ou fechados, mas era muito nítida aquela figura, que causava-lhe asco e tristeza.
Era uma mulher muito enrugada; magra quase aos ossos; olhos esbugalhados, vidrados, que sobressaiam da face macilenta dir-se-ia mais uma máscara; boca hirta com lábios adelgaçados quase invisíveis como que rascunhados no pergaminho que era sua pele; os poucos fios de cabelos não cobriam todo o couro cabeludo e escorriam para além da cintura, feito raízes velhas, finas e ressecadas; os peitos como pingentes moles e sem vida faziam um pequeno volume de cada lado do tórax e abdome até o umbigo sob as vestes rotas; as pernas e braços, como varetas de bambu cheias de nós, saiam do tronco e terminavam em extremidades tão afiladas, que pareciam ter apenas dedos.
A estranha mulher dirigiu-lhe, então, o olhar vazio, e naquelas órbitas ela se sentiu entrar, como que sugada por um túnel frio e pegajoso. Viajava a uma velocidade estonteante, e esbarrava em teias de aranha pelo caminho, apavorada queria voltar, sair daquele oco escuro e profundo, mas parecia que quanto mais desejava sair mais rápido ia ao fundo.
Foi visualizando quadros que bem conhecia.
A infância triste e sozinha no orfanato, crianças amigas suas que iam sendo adotadas em detrimento dela, a raiva e a inveja que acumulava nos recônditos de sua alma a cada adoção, o ódio e a incompreensão pelo abandono, o choro com os dentes apertados e as mãos crispadas ao travesseiro em ira.
Os maus tratos que sofreu, enquanto adolescente, sempre se sentindo preterida a outros, e o rancor e mágoa que se acumulavam. Então,a fuga do orfanato que a levou para as ruas onde conheceu a dor e o pavor, na violação de seu jovem corpo, nas noites mal dormidas sob marquises e viadutos.
A vida adulta no bordel, maltratada ainda pelos homens e mulheres, esvaziando-se cada vez mais de vida e luz e tornando-se uma negra mancha disforme cheia de cancros pelo corpo e retalhos pútridos de maus sentimentos corroendo-lhe a alma. Foi quando começou a quebrar todos os espelhos, iludindo-se que sem eles se tornaria melhor.
Viu, ainda, cenas de uma velhice precoce, esgotada e amarga, onde não conhecia mais o seu rosto, o espírito carregado de ódio por si mesma, desfazia-se em meio as areias da ampulheta do tempo, transformando-se em finos grãos que se espalhavam nos desertos de seu íntimo.
Desejava a morte mais que tudo, como um alívio para uma vida que mais lucraria em nunca ter existido. Mas, ilusão, ao morrer percebera que ainda sobrevivia, e pior, seu próprio fantasma a assombrava em questionamentos inúteis do que tinha feito para si mesma naquela existência, e aterrorizada via-se, qual caquética figura, no espelho de sua alma, o qual não poderia jamais quebrar. A tortura continuava sem fim.
Soprou, então, um vento invisível, que a fazia rolar e rolar em espiral retrógrada, completamente cega, imersa num mundo esponjoso.
Uma pequenina estrela surgiu no horizonte e foi crescendo até que num Bum! ela abriu os olhos e estava deitada em sua cama coberta de suor, o frasco de comprimidos vazio ao seu lado, o copo de água espatifado no chão.
Levantou-se com dificuldade, ainda entorpecida, agradeceu aos céus por estar de volta, prometeu-se nunca mais tomar quaisquer drogas e bendizer cada dia vivido dali para frente, foi para o chuveiro, e chorando lavou corpo e alma.
Perséfone Hades
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Obrigada por sua visita, é muito estimulante que meus textos estejam sendo apreciados pelas pessoas, acho que esta é a realização de todo autor.
Beijos no coração de todos e LUZ sempre...
Perséfone