quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A Perda

Pastor de Ovelhas em Israel
Antonio Furdiani
Que dia excepcional!
O sol brilha num céu azul que há muito não se via. As montanhas têm um tom de verde vivo e delineiam o horizonte até onde a vista alcança. As ovelhas estão animadas e os filhotes saltitam na relva em brincadeiras, as mães-ovelhas balem como se repreendessem seus filhos pelas peraltices. A relva deste ano está mais verde, cheia de brotos a crescer.
Ao longe, lá no alto da colina, fumega a chaminé do fogão de casa, mamãe está a preparar pães doces, hoje, a pedido meu. Desde que papai viajou, há algumas semanas, não a via tão animada com algo. Hoje, pela manhã, sorria e cantarolava enquanto preparava o desjejum.
- Bom dia! Meu querido e feliz aniversário! Venha sentar, tenho aqui um bolo especial que fiz para você, e quero ver meu homenzinho forte e alegre como seu pai. Pressinto que o dia será maravilhoso com um lindo sol para brindar seu natalício!
Mamãe era assim, sempre fazendo coisinhas de que gostávamos, por vezes passava horas na cozinha a tramar alguma receita gostosa. Ela adorava adornar a casa com lindas cortinas feitas à mão, toalhas bordadas sobre a mesa, delicadas cestas de fibras feitas por ela estavam sempre cheias de frutas, e todos os dias mimava seus “homens da casa”, como costumava dizer.
Eu estava fazendo 14 anos e pastoreava desde muito pequeno naquele vale que fazia parte de nossa propriedade, os nossos cães eram os melhores, e não me lembro de termos perdido uma só ovelha para os lobos tão comuns naquela região. Ficávamos até a tardinha no vale e depois levávamos as ovelhas para um curral, próximo à casa, onde passavam a noite, mas todos os dias elas precisavam de relva fresca para crescerem fortes. Nos primeiros dias da primavera ajudava papai a tosquiar as ovelhas, então uma grande parte da lã era amarrada em fardos e papai viajava para as cidades próximas para vendê-la. Já fazia quatro semanas que papai havia viajado com uma das melhores partidas de lã dos últimos anos, ele parecia muito feliz com a produção, e certamente traria novos produtos da cidade para nosso consumo.
Quando o sol estava a pino, mamãe trouxe meu almoço, batatas e salsichas com seu delicioso molho de mostarda e um daqueles pães para que eu mordiscasse à tarde. Enquanto comia, mamãe ficou a falar de como ela e papai esperaram com ansiedade para verem meu rostinho pequeno por entre os panos e como foi o meu nascimento, e como cresci tão rápido e agora era um homem com todas as responsabilidades de nossa fazenda nas mãos enquanto papai negociava.
Os dias se passavam assim, com muita tranqüilidade e eu sabia que deveria aprender tudo que podia, pois seria, também, um criador de ovelhas.
A tarde foi sonolenta e não trouxe novidades. O sol poente abrasou o horizonte buscando as verdes montanhas ao longe, então me pus a caminho de casa com meu rebanho e os cães.
Ia tranqüilo como se quisesse que aquele dia não terminasse. Depois de abrigar as ovelhas, sentei-me em uma pedra que ficava em frente à casa e fiquei a divagar sob um céu que começava a estrelar e o lusco-fusco do sol que já dobrava atrás das montanhas.
Pensei em quão boa era minha vida naquelas paragens onde Deus fazia morada, dia e noite, tudo era tão lindo e o artista deveria sentir-se orgulhoso daquele quadro. Mamãe e papai sempre tão alegres eram pessoas boas e ajudavam quantos por ali passavam.
Divagando e respirando os últimos raios de sol, subi as escadas que levavam ao alpendre, onde mamãe estava sentada a tricotar um novo par de meias. Ficamos ali sentados até que a noite caísse por completo e pudéssemos ver as estrelas no céu. Conversamos sobre as bobagens do dia a dia e mamãe falou de sua ansiedade para que papai voltasse.
Já passava das oito quando entramos, comemos e nos recolhemos para dormir. Fazia mais ou menos uma hora que tinha me deitado, quando ouvi o tropel de cavalos, levantei e fui à janela, e mamãe chegou em seguida, assustada, parecia suar.
Abri a porta para receber o meu tio, irmão de papai, que já apeava próximo as escadas. Ele vinha sério e assim que subiu as escadas, nos abraçou e olhando minha mãe nos olhos disse: “Sinto muito”. Aquela frase caiu como uma pedra sobre a minha cabeça, olhei em volta e vi que chegava logo atrás uma carroça, que vinha a passos lentos. Mamãe correu naquela direção e soltando um grito abafado e desmaiou; corri para ela e com auxílio de meu tio socorremos a pobre infeliz que já acordava e gemia dolorosamente pela morte de papai.
Senti-me como que anestesiado, e sou incapaz de lembrar os detalhes daquela noite, a não ser o choro baixinho de mamãe interrompido, de quando em quando, por soluços profundos que vinham do âmago de sua tristeza, e me faziam conhecer um sentimento do qual eu não tinha, ainda, experiência alguma.
Lembro-me vagamente do Pastor recitando o Salmo de Davi: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará... Ainda que eu caminhe pelo vale das sombras da morte...”; a colocação da lápide com o nome de papai; as pessoas nos apoiando no adeus final; os olhos de mamãe como contas de vidro - vazios.
Mesmo agora, sentado sobre minha pedra favorita no pasto, olhando para a imensidão das montanhas no horizonte, ouvindo o cão a ladrar para as ovelhas, pareço estar sonhando, e ainda reluto em compreender este sentimento de perda.
Minha cabeça dói, fecho os olhos, as lembranças volitam em torno de mim como pequenos pássaros, os rostos afiguram-se a retratos, minha memória parece irreal, um sonho talvez, e o mundo se torna um incomensurável espaço em branco.
Perséfone Hades
Publicado em http://www.poesias.omelhordaweb.com.br/pagina_textos_autor.php?cdEscritor=1077

2 comentários:

  1. Olá, querida amiga
    Fiquei muito feliz em receber tua visita e ver que voltou com textos maravilhosos. Aconteça o que acontecer, você nunca estará vazia, pois tem o dom de escrever, na alma!
    Beijossssss

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  2. Quando me deparei com minha tela, tão modesta e despretenciosa em seu blog, fiquei ao mesmo tempo surpreso e atônito. Nunca pude imaginar que meu trabalho pudesse causar tal boa impressão a alguém, ao ponto de usar a imagem como pano de fundo de tão belas poesias.
    Muito grato!

    Antonio Marcos Furdiani

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Obrigada por sua visita, é muito estimulante que meus textos estejam sendo apreciados pelas pessoas, acho que esta é a realização de todo autor.
Beijos no coração de todos e LUZ sempre...
Perséfone