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quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Memórias V

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A Persistência da Memória (detalhe) - Salvador Dali

Algumas experiências, em nossas vidas, têm mais peso que outras. Há as que nos acompanham para sempre.

Era o ano de 1964, início do primeiro ano escolar. Um belo dia de sol brilhando ainda com as luzes do verão.

Saia azul de preguinhas, blusa muito alva de golinha arredondada, meia ¾ branca, sapatinho preto novinho em folha; cadernos encapados e lápis apontados, pasta onde guardar tudo, um cheirinho de coisa nova. Tudo bonito e novidade.

Mãos dadas, mãe e filha, lá se vão para o primeiro dia na escola. Caminho estranho, cheio de novidades, casas diferentes, algumas mais bonitas, outras muito velhas.

O calor da mão de mamãe dava segurança, seus passos firmes mostravam o caminho e nada havia a temer. A voz suave dizia que seria um dia maravilhoso, aprender era uma coisa boa, poder ler tudo seria incrível. Desenhar, fazer contas...

A escola parecia enorme. Um muro muito alto, um portão largo e aberto de par em par parecia dizer: “Bem vindos!” O prédio retangular, como tinha janelas e eram enormes!

Mãe e filha adentraram e desceram a rampa que dava acesso ao pátio. Nossa como tinha gente! A maioria das crianças usava o mesmo uniforme, algumas usavam roupas comuns e chinelos, como se fossem brincar.

As mães tagarelavam entre si. Mamãe parecia um pouco apreensiva, mas sorria cordialmente quando colocou sua filha na fila indicada para a professora Marília e ficou ao lado esperando. Muito alarido, crianças e mães falando, e as duas se olhando.

Bate o sinal e todos começam a andar, as mães ficam, a menina corre de volta para a mãe, não queria ir, tinha medo de ficar sem a sua mãe.

A mãe tenta acalmar a menina, que já chorava, dizendo que ia ficar ali esperando e que ela podia seguir tranqüila com seus novos coleguinhas. Mas a pequena não queria ir. Então como todos já tivessem entrado, a mãe acompanhou a filha até a sala de aula e a colocou nas mãos habilidosas da professora e continuou ali ao lado de fora, como para dar segurança à filha.

Quando a menina foi levada para a sua carteira, a professora foi doce como a mamãe e também assegurou que a mãe ficaria esperando. A menina olhava as outras crianças quietas e calmas e acabou por serenar.

Neste primeiro dia a professora começou pela letra A e ensinou a escrevê-la e todo um universo novo se descortinava.

A sala de aula tinha muitas mesas acopladas a cadeiras que eram chamadas carteiras; o chão de assoalho com tablado na frente onde ficava a lousa e a grande mesa da professora, cheia de livros e cadernos sobre ela três imensas janelas que davam para frente da escola e podia-se ver a rua; e uma porta com uma janelinha de vidro; era outro mundo, tudo parecia maior.

Dona Marília era bonita, alta, magra, longos cabelos castanho-escuros, olhos inteligentes e meigos, voz suave e calma, mantinha todos atentos à lousa e seus cadernos e cartilhas; uma mulher adorável, que facilmente se percebia, adorava estar ali conosco.

Os dias iam se passando e depois de um tempo, disputávamos quem carregaria a bolsa da professora; a menina já não se lembrava das lágrimas do primeiro dia, e tinha sempre uma descoberta nova para levar para casa e dizer à mãe o que aprendera.

Os cadernos iam sendo utilizados e tinham ali as primeiras letras; a lição de casa, sempre em grande quantidade nos ocupava por um bom tempo extra quando voltávamos para casa.

Todas as lições foram aprendidas e passamos, com louvor, para a segunda série.

A Cartilha

Um livrinho retangular, grosso para nós, naquela idade, pois apenas conhecíamos livrinhos finos e cheios de figuras. A capa mostrava uma criança andando por um caminho com um arco-íris no céu, daí seu nome: ” Caminho Suave”.

A primeira lição A de abelha, depois B de boi, C de cão, D de dado e assim por diante. Começamos pelas vogais e repetíamos infinitamente os movimentos que formavam cada letra. Hoje não sei se conseguiria repeti-los com a técnica que nos era ensinada. Parecia uma ciência muito difícil e importante, repetir os caracteres daquela forma.

Aos poucos as letras se juntaram e B com A ficava BA e se uníssemos dois BAs, tínhamos a palavra BABA ou BABÁ. Mais um pouco e se formavam aos nossos olhos atenciosos, frases como: “O boi baba”, “A babá ninou o bebê”. Nossa que incrível!

Imagino que todos nós passamos por estes momentos de pura magia, quando descobrir as letras e poder lê-las em qualquer lugar era o mais espantoso dos feitos.

E foi pela dedicação da Dona Marília, que me capacitei a estar aqui agora escrevendo e relembrando-a com ternura. Aonde quer que a senhora esteja, Dona Marília, o meu muito obrigada, e que seja abençoada pela sua dedicação a todos que alfabetizou.

Perséfone Hades

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sábado, 4 de abril de 2009

Memórias IV

 crianças1

Todo momento para uma criança é mágico.

Minha irmã e eu vivíamos esta magia, naquele quintal.

Era uma área enorme, para nós, em frente da nossa casa. Há mais ou menos dez passos da porta de entrada ficava uma escada, não muito íngreme, com 7 ou 8 degraus, larga. Lá era nosso palco. Ali ensaiávamos nossas vozes infantis, com algum pedaço de madeira nas mãos ou um cabo de vassoura, à moda dos microfones da época. Estávamos na década de sessenta e as músicas eram as do Festival da Canção, que acompanhávamos na extinta TV Record, músicas do Roberto e Erasmo Carlos e da Vanderléia, ídolos da época.

Cantávamos a todo pulmão e esquecíamos do mundo. Éramos estrelas. Apresentávamos uma à outra como num programa de TV. E era o máximo, sempre que assim fazíamos, queríamos ser artistas, e ali naquele momento éramos.

A vizinha do lado direito, Dona Geo, era uma senhorinha a qual chamávamos de Vó Geo, vinha muitas vezes à cerca para nos ver e por vezes conversava conosco.

Nosso público era o cão vira-latas malhado de preto e branco que adorávamos, e muitas vezes teve de agüentar meu peso quando me fazia de  amazona. E nosso gato, um bichano castrado, grande e preguiçoso que dormia na minha cadeira preferida. Era maravilhoso viver aquelas tardes quentes e ensolaradas apenas a cantar.

jovem guarda

“ E aí vem, a minha amiguinha, Vanderléia.” Minha irmã entrava no palco e começava a cantar: “Por favor, pare agora, senhor juiz”...

Quando nos cansávamos de soltar a voz, íamos para o balanço, sob o abacateiro, lindo, maravilhoso, alto, uma árvore plantada por nós, que todo ano se carregava de frutas grandes e redondas, o melhor abacate que já comi. Eram tantas frutas que as distribuíamos para os vizinhos, cada abacate chegava a pesar 2kg e tinham uma polpa tenra e doce, que parecia manteiga.

Eu gostava quando mamãe cortava-os ao meio, retirava o caroço, cortava a polpa ainda dentro da casca e colocava açúcar e limão. Eu me fartava de comer aquela polpa agridoce deliciosa e macia, ainda hoje sou capaz de sentir o sabor e o aroma que tinha.

Era neste abacateiro que ficava o balanço, onde podíamos balançar alto como se fôssemos voar, sentindo o vento em nossos cabelos e rosto; às vezes eu virava bastante para trás, só para ver o mundo de pernas para o ar, e aquele céu azul por entre os galhos da árvore. Podíamos ficar apenas sentadas ali, por horas, chegando a cochilar no calor da tarde, abrir os olhos e ver o mundo tão claro, e ir para dentro de casa e enxergar tudo escuro, era engraçado e inexplicável, mas não nos importávamos com explicações deste tipo.

O Balanço - de Jean Honoré Fragonard

O Balanço - de Jean Honoré Fragonard

O balanço também era local para conversarmos com a Dona Geo, ela fica falando da sua terra, Alagoas, e da época em que era criança, às vezes eu achava que ela sentia saudade do balanço dela, lá na sua casa de criança...

Perséfone Hades

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quarta-feira, 1 de abril de 2009

Memórias III

Naquelas épocas, o tempo andava devagar, como se quisesse saborear cada pequeno naco da passagem do sol e da lua.

O sol brilhava com muita intensidade, mas seu calor era gostoso na pele, lembrando o ventre da mãe. As manhãs pareciam render muito, os almoços feitos de forma lenta e artesanal com amor e carinho.

A escola nos entretinha e ensinava coisas de um mundo que queríamos conhecer, tudo era novidade.

As tardes modorrentas, à sombra do abacateiro ou do caramanchão de maracujá doce, o cheiro de flores no ar, a poeira vermelha subindo em nuvens às brisas de primavera.

Crianças a beira do pequeno córrego que escorria do tanque, com varas feitas de galhos secos e na ponta do fio uma folha amarrada, sonhando com pescarias.

O gato dormindo sob a goiabeira ou sob a janela do quarto de mamãe. O cão vira-latas da melhor espécie, deitado na área curtindo o calor do final de tarde.

Tudo calmo, cada detalhe não escapava. Tínhamos a eternidade para observar os movimentos lentos da lesma sobre a grama, do caracol que procurava o lugar mais fresco e úmido para botar, a formiga no trabalho de cortar preciso e sem pressa, o caminhar tortuoso de uma joaninha nas folhas da roseira.

O mundo parecia mais bonito, limpo, cheiroso, tranqüilo...

A noite descia lânguida, namorando longamente com a tarde, o sol via a lua surgir tímida e beijava-a com seus últimos raios num cumprimento de boa noite lento e amoroso. Ali deitados na grama, com todo o Universo acima de nós, ficávamos a divagar sobre as existências, sobre a vida, e quase que podíamos tocar as estrelas. Papai e mamãe de mãos dadas, aconchegando-nos e brincando de contar estrelas conosco. Às vezes, uma estrela cadente, e uma conversa tola sobre discos voadores, outros planetas, um devaneio sem fim...

O sono era reparador, cheios de sonhos alegres, sonhos luminosos com muita luz e cores. Acordar pela manhã era uma festa, a felicidade de ver novamente o olho do sol.

Naquela época o tempo caminhava e saboreava o prazer de ver o espreguiçar de cada folhinha do jardim...

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Giverny - França - Jardim da casa de Monet

Perséfone Hades

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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Memórias I

crisálida  - pupa_euploea
Aquele quintal era nosso mundo.
Havia no muro à esquerda e próximo da cerca da frente, um pé de tomate.
Era um arbusto de mais ou menos 1,5 m de altura, de folhas médias muito verdes e com pêlos na face dorsal e um odor forte e gostoso.
De quando em quando apresentava flores brancas muito delicadas que ao secarem davam origem a um pequeno fruto esverdeado, que ia crescendo até se tornar uma fruta pequena alongada, vermelho-alaranjada, de sabor doce delicioso.
Meu pai dizia que era tomate francês, comíamos como frutos e não em saladas ou molhos.
Um dia descobri lagartas sob as folhas banqueteando-se, comecei a observá-las.
Lá ia eu todos os dias, para reparar que as lagartas engordavam e cresciam, e as folhas do tomateiro diminuiam...
Depois de algum tempo as lagartas imensas, parecendo que iam estourar, se aquietavam e formavam, de um dia para o outro, uma espécie de casulo a sua volta, que amadurecia lentamente como os tomates, só que se tornavam prateadas.
Pareciam pequenas jóias presas às folhas e galhos daquele arbusto, pela manhã pingavam o orvalho e refletiam intensamente a luz do sol, ficando ainda mais belas.
Depois de um tempo que eu não sabia precisar, os casulos ficavam vazios como conchas secas e seu brilho prateado desaparecia, ficavam sem vida.
Aquilo me intrigava, até que pude ver um dos casulos abrir-se na parte inferior e algo começou a movimentar-se.
Eu sabia,era a lagarta que saía para respirar...
Demorou muito tempo e uma cabeça saiu e depois umas pernas longas(?) e o corpo que parecia amassado. Era outro bicho!!! Onde estava a lagarta?
Aquele bicho estranho ficou ali, parado sob a folha e a parte amassada de seu corpo começou a distender-se.
Espreguiçaram-se lindas asas amarelas salpicadas de manchas pretas, secando ao sol, e de repente a borboleta saiu voando pelo quintal.
Minha surpresa foi enorme. E como era gratificante passar dias seguidos a observar o processo todo...
Um belo dia o tomateiro morreu, mas eu tinha aprendido que a vida se sucede em transformações, não conseguia ficar indiferente às lagartas como as outras pessoas.
Eram animaizinhos maravilhosos e tinham o poder de transformar-se em borboletas!

Anos mais tarde, estudando e depois lecionando anatomia humana na universidade, eu tive a oportunidade de ter um sentimento parecido - quando todos tinham nojo dos cadáveres, e para mim eram como crisálidas vazias, de onde tinham voado lindas borboletas...
Perséfone Hades (Bia Unruh)