sexta-feira, 24 de outubro de 2008

A Morte


"Só o que a morte escolheu, entretido a vomitar o sangue ou a conservar as entranhas, descobre esta verdade: não há horror algum na morte. O próprio corpo se lhe antolha instrumento doravante inútil. Como já não serve para nada, tem de o pôr de parte. Corpo desmantelado, objeto de ostensiva deterioração. E, se esse corpo tem sede, o moribundo só vê nele uma ocasião de sede, de que, aliás, gostaria de se ver livre. E tornam-se inúteis todos os bens que serviam para preparar, alimentar, festejar essa carne semi-estrangeira, afinal mera propriedade doméstica, como o burro atado à sua argola.
Começa então a agonia, que não passa do balanço de uma consciência ora vazia ora cheia das marés da memória. Vão e vêm como o fluxo e o refluxo, trazendo, da mesma sorte que tinham levado todas as provisões de imagens, todas as conchas da recordação, todos os búzios de todas as vozes ouvidas. Sobem, banham de novo as algas do coração, e aí temos todas as ternuras reanimadas. Mas o equinócio prepara o refluxo decisivo, o coração se esvazia, a maré e as suas provisões reentram em Deus."
Antoine de Saint-Exupéry (Cidadela)

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Obrigada por sua visita, é muito estimulante que meus textos estejam sendo apreciados pelas pessoas, acho que esta é a realização de todo autor.
Beijos no coração de todos e LUZ sempre...
Perséfone